sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Resenha na "Ilustrada", da Folha, em 17/10

RODAPÉ LITERÁRIO
Roma em Pompeia


Romance de estreia de Bruno Zeni projeta narrativas paralelas sobre ruínas da cidade moderna


MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

PRIMEIRO ROMANCE de Bruno Zeni, "Corpo a Corpo com o Concreto", dá fôlego narrativo a um projeto literário iniciado com "O Fluxo Silencioso das Máquinas" -livro fragmentário, composto por cenas descontínuas da solidão urbana, vazadas numa escrita próxima ao poema em prosa.
A expressão "projeto literário" se aplica não apenas pelo fato de o livro ter sido escrito com apoio do Programa Petrobras Cultural mas sobretudo porque "Corpo a Corpo com o Concreto" é uma imagem em negativo do projeto mais amplo da cidade moderna, do espaço de convívio que uma cidade como São Paulo reiteradamente nega.
Romário Ribeiro, o Roma, é um jornalista de 25 anos que remói impasses amorosos e zanza pela cidade destilando pensamentos anotados num "bloco de apontamentos criminosos". Paralelamente, em capítulos intercalados, há outra voz narrativa, de um morador de rua que se define como um "Eu cão-imundo", como "Eu não-homem", fluxo silencioso de quem encontrou "a vida em paz no intervalo", para além das máquinas de triturar experiências.
Os dois enredos desenham uma cartografia de utopias e ruínas. Roma mora na Pompeia, região paulistana contígua ao "bairro boêmio e esclarecido" da Vila Madalena, mas trabalha na opulenta Vila Olímpia, cujos edifícios pós-modernos descreve como "palafitas de tecnologia avançada".
Todo o romance é atravessado por uma idealização da vida suburbana, pela nostalgia de uma sociabilidade perdida, mas que sobrevive em "planos de revolução conspirada entre sinucas e escadarias e pichações de Pinheiros". Até os nomes das personagens -Sheila (entregadora de prospectos imobiliários no farol), Joseane (DJ tatuada que "namora umas minas também") e Suellen (amor do protagonista com alcunha de futebolista)- indicam esse sonho bem brasileiro de uma modernidade torta, provinciana e acolhedora.
Consciente da impotência dos arroubos melodramáticos de seu narrador, Zeni compõe na outra narrativa, do mendigo Amaro abraçado a seu rancor, uma nada acolhedora antiutopia de retorno ao "útero negro e longo da noite". O estranhamento provocado desde o início pelo áspero existencialismo do morador de rua indica o desfecho traumático, no qual as ingênuas invectivas de Roma contra o mundo administrado se fundem com a autocombustão de Amaro -culminando no plano delirante de uma conflagração que restaure "o peso e a presença dos que não têm nada".
É como se, para o autor desse livro cuja escrita delicada guarda significados ocultos (como no pseudoanagrama que irmana os protagonistas), fosse necessário carbonizar Roma para reconstruir Pompeia.


CORPO A CORPO COM O CONCRETO

Autor: Bruno Zeni
Editora: Azougue
Quanto: R$ 38 (136 págs.)
Avaliação: bom

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O autor

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São Paulo, SP, Brazil
Escritor e doutor em Letras pela USP. Livros: "O fluxo silencioso das máquinas" (Ateliê Editorial, 2002), "Sobrevivente André du Rap "(Labortexto Editorial, 2002, em parceria com José André de Araújo) e "Corpo a corpo com o concreto" (Azougue Editorial, 2009).